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CONTO:MEMÓRIAS DA TERRA DOS MORTOS


Sempre acreditei que os sonhos são capazes de nos fazer viajar através do tempo e do espaço. Durante aquele longo espaço de tempo em que fechamos nossos olhos e nos deixamos dominar pelo torpor, nossa mente viaja através de terrenos que nunca antes pisamos, e talvez nunca o faremos. Há quem diga que os sonhos são manifestações do subconsciente, assim como alguns dizem que são viagens que nossas almas fazem enquanto deixam nossos corpos abandonados em nossas camas. Se forem, de fato, manifestações do subconsciente, então algumas pessoas, provavelmente as mais sensitivas, correm o risco de viajarem através de toda a história da humanidade, se levarmos em consideração a teoria do subconsciente coletivo que Carl Jung teorizou há muito tempo.

Confesso que atualmente não tenho nenhuma teoria formada sobre o que são, realmente, os sonhos. Diria que sou agnóstico no que tange a este assunto. Talvez esta seja apenas uma desculpa para não me dar ao trabalho de ter que pensar sobre um assunto tão complexo. Talvez seja apenas o trauma de um pesadelo do qual, embora eu tenha acordado, as imagens ainda insistem em atormentar-me dia e noite. Apesar de não ter teoria feita sobre o assunto, eu tenho a esperança de que os sonhos não passem de imagens desconexas, geradas pelas nossas mentes cansadas após um longo período acordado.

O dia, eu não me recordo. Embora eu possa afirmar que se passaram mais de um ano desde a noite em que viajei através das barreiras do tempo, através da fina película que separa a nossa realidade do passado de caos e tormento em que, aparentemente, vivemos. Uma época em que os seres humanos estavam a milênios de sua mísera existência. Uma época em que os tambores entoavam sons que pareciam ter vida própria, e moviam-se livremente sem as limitações das barreiras físicas que hoje nos cercam.

Eu havia chegado em casa após um longo dia de trabalho, cansativo, como de costume. Já era madrugada, e, embora acostumado a transitar neste horário, aquela madrugada era diferente. Não sei dizer se era por causa da lua cheia, que emanava sua luz amarelada mais forte que o normal, e, de tão próxima, parecia prestes a cair sobre a terra. Talvez fosse porque, embora tão iluminada pela lua a iluminação pública se fazia desnecessária, a noite estivesse se movendo ao meu redor, quase me afogando em meio ao seu mar de águas negras e gélidas. Apertei o passo para chegar logo em casa, pois aquela sensação não me agradava nem um pouco. Ao chegar em casa, tomei um banho e deitei-me para dormir.

Cansado como estava, meus olhos fecharam-se alguns minutos depois que deitei na cama, fato que achei excelente pois normalmente tenho dificuldades para adormecer. Tão logo a escuridão fez-se em minha mente, comecei a perder a consciência, sentindo aquele agradável torpor que chega junto com o sono. Logo que meu corpo já não mais respondia a nenhum impulso, porém, senti a mesma sensação que senti ao caminhar pela rua. Eu podia ver, claramente, a lua logo acima de mim, banhando-me com seus raios brancos; desta vez ela parecia mais perto do que quando estava na rua. A escuridão agora parecia mover-se ao meu redor, como uma imensidão de águas negras.

Após alguns minutos parado no que parecia ser a minha rua - digo que parecia pois algo estava ligeiramente diferente, talvez fossem as casas e os carros que não tivessem nenhum tom de cor além do cinza que os tomava por inteiro, fazendo-a parecer um perfeito cenário de um filme em preto-e-branco -, senti que a escuridão agora pressionava meu corpo por todos os lados, fazendo com que eu começasse a flutuar. A sensação era muito semelhante a estar em pleno alto mar em uma noite chuvosa, e, após horas nadando sem chegar a lugar nenhum, relaxar o corpo e começar a boiar. Era isso, eu estava boiando na escuridão. Quanto mais eu relaxava, mais o meu corpo saía do chão, deixando para trás aquela rua em preto-e-branco com seus tons cinzentos.

Relaxei por completo, movido pelo desejo de que o torpor e o cansaço tomassem conta de meu corpo, fazendo com que eu finalmente caísse em sono profundo, ou então acordasse, se aquilo fosse um sonho - ou pesadelo. Mas não acordei, tampouco dormi. Aquela massa invisível conduziu meu corpo além das estrelas, não para o espaço, mas sim para longe, muito longe no tempo. Da estrela mais alta, dentro do mais fundo buraco da terra, vi quando o tempo começou a andar para trás. Vi a minha rua, quando ainda transitavam nela os cavalos e carruagens; vi quando ainda nada havia ali a não ser mato e terra, com grandes árvores retorcidas e antigas, da época em que o homem nem caminhava por estas terras. O tempo não parava de retroceder, e fui levado a ver, muito rapidamente, eventos que só li em livros; vi quando a Segunda Guerra estava em seu ápice, com soldados morrendo por todos os lados; vi quando Galileu era considerado bruxo por suas idéias revolucionárias para a época; vi quando o fogo engoliu Roma, e vi quando Jesus foi crucificado e morto.

Depois de passear por todo aquele circo de horrores, minha mente já não mais raciocinava, talvez pelo cansaso que agora fazia meu corpo sentir-se como se estivesse esmagado pela imensidão negra que abraçava-me. Talvez fossem as imagens de horror e destruição que presenciei ao longo da minha viagem astral. Perguntava-me quando aquele tormento teria fim, pois a sensação de flutuar no espaço não era muito agradável; eventualmente, sentia-me como se despencando de um prédio, com um frio tomando-me o estômago fazendo com que ele quase virasse ao avesso.

Continuei em minha viagem, não sei ao certo se subindo ou descendo, por um longo tempo, até que senti que havia parado. Eu estava agora, imagino, boiando no infinito que nos rodeia. A escuridão ainda se fazia presente quando percebi, em algum ponto distante, uma pequena luz vermelha. A luz foi aumentando, tornando-se mais próxima, e foi então que vi o que me atormenta até os dias de hoje. Um cenário de caos e desordem, onde olhos vermelhos e sem pálpebras desfilavam e dançavam em meio à destruição, sobre prédios invertidos e desprovidos de cores. Fogo descia do céu vermelho, enquanto rios de sangue corriam entre os prédios. Tambores emitiam sons que pareciam vivos, eram densos e propagavam-se pelo espaço, sem qualquer limitação física; ao chegar em meus ouvidos, os sons pareciam adentrar por minhas orelhas sacudindo meu cérebro como gelatina, e pareciam fazer isso propositalmente. A dor tomou conta de todo o meu corpo, e embora eu quisesse gritar, som algum saia de minha garganta. Tentei correr, nadar, caminhar, para longe dali, mas eu não tinha controle algum sobre meu corpo. Foi então que a imensa massa de escuridão afastou-se de meu corpo, fazendo-me despencar do ponto no infinito onde eu estava. Caí por um longo tempo, sem alcançar o chão – ou o céu -, meus órgãos começaram a dançar dentro de mim, e meus olhos estavam quase pulando fora de órbita quando, finalmente, acordei ensopado de suor em minha cama.

Por alguns minutos fiquei ali sentado, tateando ao meu redor para certificar-me que aquela era minha cama. Acendi a luz para ter certeza de que estava em meu quarto, e, quando finalmente tive certeza de estar em casa, fui até a cozinha e bebi um imenso copo d'água. Hoje, não fossem os remédios dados a mim pelos médicos do hospital psiquiátrico onde viverei até meus últimos segundos de vida, eu não poderia dormir, pois sempre que deito-me para dormir e o sono chega, sempre estou parado na mesma rua em preto-e-branco, sentindo a escuridão pressionando meu corpo e fazendo-me flutuar levemente no ar.

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About Daniel de Araujo

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